sexta-feira, setembro 17, 2004

Pink Martini

Sympathique, Heinz Records, 1999

Amado Mio
(…)
I want you ever
I love my darling
wanting to hold you
and hold you tight
amado mio
love me forever
and let forever begin tonight



sexta-feira, setembro 10, 2004

por um segundo mais feliz


Conheci-o há muito tempo. Fazia parte de mim de há tanto o conhecia. Durante muitos anos não o vi, mas pensava nele e ele, sem dúvida, em mim. Quando o reencontrei numa tarde de chuva, numa rua do Porto, não o reconheci. Ouvi-o gritar um nome familiar, mas antigo, “não era meu”, pensei. Até que uma breve recordação acordou em mim e respondi-lhe. Veio ter comigo com a felicidade bordada no rosto. “Estás tão diferente”, o meu pensamento voava, “mas és tu”.Tropecei nas palavras, sem saber o que dizia, queria fazer um resumo rápido de tudo. Trocámos os números de telemóvel, enquanto ele corria para uma entrevista de emprego. Quando nos separamos, fiquei com uma pequena sensação de felicidade, a que não dei muita importância. Ligar-lhe-ia quando voltasse ao Porto.
Passaram-se meses antes que tivesse oportunidade de lhe ligar, mas quando o fiz, foi de uma forma consciente. Não me reconheceu ao telefone e, pela primeira vez, a minha auto-confiança não desmoronou perante esta dúvida. Marcamos encontro para essa noite no Aviz. Atrasei-me, claro. Ele estava no café, ao fundo, de frente para a porta. O mesmo cabelo comprido, o brinco na orelha, e o ar descontraído de quem tinha fumado um charuto mesmo antes. Bebia um café, acompanhado de um brandy. Estava aborrecido pelo meu atraso, mas não se importou muito. Após uma troca de primeiras impressões, sugeriu-me irmos assistir a uma sessão de poesia. Dediquei-lhe um sorriso inteiro, pois só ele sabia o quanto eu amava a poesia. Disse-lhe que sim. Bebi ainda um descafeinado, “para não perder o sono”, disse eu em jeito de desculpa, enquanto ele terminava o brandy. “Não tem aqueles jeitos típicos de quem tem o cabelo comprido”, pensei eu.
Levantamo-nos e recebemos o ar fresco de Fevereiro. Eu trazia um casaco muito fino para a ocasião, enquanto ele estava aquecido pelo brandy e por um anorak de penas. Perguntou-me se tinha frio, ao que francamente respondi que não. Enquanto descíamos a rua em direcção ao rio, tentou abraçar-me. Fiquei tensa, como um elástico distendido. Não retribui, o que é já meu por defeito. Os contactos físicos sempre me deixaram nervosa e a minha natureza desconfiada não permite aproximações. Mas pensei que estava a ser parva, pois quem me abraçava era um amigo de infância, alguém que me conhecia há anos, há mais anos do que qualquer outra pessoa. Fora o primeiro rapaz a apalpar-me no 5º ano, e a levar um estalo de recompensa. Só me lembrava da alegria que vinha dos meus reencontros com ele. Uma vida passada em reencontros, sempre quando eu estava mais em baixo. Disse-lhe isto e continuei.
- És o meu anjo da guarda, sabias? Ele sorriu, concordando, enquanto olhava o céu. É verdade, apareces sempre que a vida me prega uma partida.
- E que partida te pregou desta vez?
Não sabia como havia de lhe contar a história toda. Mas, pela primeira vez pude despejar tudo.
- O meu último namorado deixou-me. Estava cansado de ouvir sempre a mesma coisa, estava cansado de mim, das minhas queixas, dos meus ciúmes, das minhas indecisões. Tenho uma vida construída com ele, casa, carros, quatro anos, graças a Deus, sem filhos. Namora outra, uma colega de trabalho. No fundo fui eu que o deixei, pois arranjei emprego em Coimbra, para ter mais espaço para mim. Não consegui dar o passo seguinte. Precisava de mim. Agora tenho uma espécie de amante, um jornalista, que me recebe quando venho ao Porto. Que achas?
- Acho que não estás bem assim. Disse-mo com pena, e foi como apanhar um safanão gigantesco. Desviei a conversa.
- “Por um segundo mais feliz” – que quererá dizer?, perguntei eu ao ler um graffiti escrito numa parede branca e inclinada. Achas que basta um segundo para se ser feliz, ou achas que era alguém feliz que queria mais um segundo?
- Creio que se pode ser feliz num só segundo. Nunca foste feliz assim?
O meu olhar mudo era inquisidor, pois ao mesmo tempo o que ele me parecia querer dizer era um lugar-comum e a mais fantástica novidade. Ele continuou, deambulando num raciocínio claro e lógico, de quem já havia experimentado todos os tipos de felicidade e todos os tipos de dor.
- Nunca olhaste alguém ou algo e sentiste o teu coração vibrar, nunca um suspiro te soprou dos lábios completamente incontido, nunca pensaste estar feliz por algo que foi tão rápido que nem te apercebeste?
- Não sei. Acho que um segundo é pouco para saber se estamos felizes, por isso, mesmo que seja possível nunca vamos sabê-lo.
Cedeu ao meu raciocínio, sabendo que o que eu dizia não era verdadeiro, mas fez um silêncio cortês. Sorria. Acabou por dizer:
- Talvez.
Entramos no bar, em que ele conhecia o dono. Cumprimentaram-se apenas para ficarmos a saber que hoje não haveria declamação de poesia. Entrámos na mesma, e ficamos sentados sozinhos numa esplanada gelada de Inverno. Mas continuávamos sem frio. Falamos do passado, de alguns dos momentos que passamos juntos. E outras histórias. Falou mais ele, do seu trabalho, das suas experiências adquiridas ao longo de anos no estrangeiro. Eu ouvia-o entre fascinada e invejosa. Mas desta vez eu tinha planos para lhe apresentar. Contei-os e ele apoiou-me, não com palavras, mas com gestos e olhares. Não me tentara abraçar desde aquela vez. Sabia que eu iria repeli-lo da mesma forma, e o seu ego não permitia mais recusas.
Fartos do silêncio da esplanada e da companhia de um gato preto que teimava em enrolar-se nas nossas pernas, decidimos continuar a descer até à Ribeira.
Nunca o ar me parecera tão frio, mas sem que essa sensação fosse sentida pela minha pele. Acabamos por atravessar a ponte, porque eu queria ver a Ribeira da outra margem. A luz artificial coada pelo nevoeiro da respiração do rio, conferia harmonia aos nossos movimentos e o silêncio permitia-me ouvir o correr melancólico das suas águas. Não chovera muito ainda nesse Inverno. Como ele dizia não conseguir ouvir as palavras do rio, aproximamo-nos das margens, onde nos sentamos. Um peixe deu um salto. Pela primeira vez senti um arrepio de frio ao sentar-me na pedra húmida. Ele tirou o casaco e pô-lo delicadamente sobre os meus ombros, sem me tocar a pele. Não sei porquê senti-me no meio de um filme e recordei que havia lido há pouco que eram poucos os filmes portugueses que tiveram lugar nessa cidade mágica que era o Porto.
- Mas isto não é o Porto. Estamos do outro lado. E brincou. Sabes qual é a outra cidade da Europa que tem sete pontes como o Porto?
- Não sei. Paris tem muitas mais de certeza, talvez Berlim.
Ele riu, com a boa disposição que mantinha desde o início.
- É Vila Nova de Gaia!
Ri também da idiotice, quase inocente. Era o tipo de gracejo que eu contava ouvir do filho, que ainda não tinha, à saída do Jardim Escola.
E depois disse-me, de forma envolvente como se fosse um abraço de palavras:
- Não percebo pois quando estou contigo sinto uma tranquilidade e uma segurança. É assim sempre que te reencontro. Como é que nada se altera ao fim de tantos anos?
Sorri, agora era eu o seu anjo da guarda.
- Sim, eu sei. Passa-se o mesmo comigo. Sinto que te posso contar tudo. Não deves estranhar, tem a ver com o facto de nos reencontrarmos sempre, como se a vida nos quisesse manter em contacto com algum objectivo desconhecido.
- Posso contar-te algo que nunca contei? Estou agora com alguém, mas é uma relação estranha. E o que me incomoda é que não é a relação mais marcante da minha vida.
- E qual foi a relação mais marcante?
- Quando andava no secundário apaixonei-me pela professora de Francês, chamava-se Helena, tivemos um caso, foi o meu primeiro amor. Marcou-me não só porque ela me iniciou sexualmente, mas porque senti que faria tudo por ela.
Eu estava espantada, mas eu também dava aulas, e conhecia inconfessavelmente, alguns dos pensamentos que cruzavam o meu espírito perante alunos potencialmente mais atraentes e inteligentes. Perguntei, curiosa, cedendo à luxúria dos meus desejos:
- Que idade tinha ela?
- Trinta e dois.
- E tu?
- Dezassete. Passei o meu 18º aniversário com ela. Era a pessoa mais importante para mim. Era casada, mas não tinha filhos. Eu aparecia todos os dias depois das 9h, altura em que o marido saia para ir trabalhar. Durou quatro meses.
- Não te sentias mal por causa de ela ser casada?, questionava sem julgar, sentimento impossível perante alguém que assim me contemplava, um olhar triste, e um pedaço de sorriso desmaiado nos lábios.
- Um pouco. Foi por causa dele que a deixei. Agora percebo que ele sabia de nós. Quando a Helena me pediu para ficar com ela, dizendo que ia deixar o marido, percebi que tudo estava errado. Disse-lhe que eu ainda não sabia o que queria fazer com a minha vida e que, a qualquer momento poderia deixá-la por alguém com a minha idade. Ela devia ficar com o marido.
- Arrependeste-te? Se calhar era mesmo ela.
- Acho que não. Logo a seguir fui chamado para a Marinha, e quando voltei soube que ela teve uma filha. Aqui, hesitou, por um segundo. Fiz contas e mais contas, e a possibilidade existe. Pode ser minha. Senti-me usado. Talvez ela só me quisesse porque não conseguia ficar grávida do marido. Já tentavam há 3 anos, quando começámos a encontrar-nos.
Eu estava enregelada. A humidade subia-me pelas pernas e enrolava-se na minha cintura como se fosse um braço do rio a puxar-me para as profundezas. Ele olhava para mim agora, nos olhos, e eu não me sentia invadida mas agradecida pois parecia querer contrariar a força que me arrastava.
- Se calhar tenho uma filha e talvez um dia ela me venha bater à porta. E o amor que tive por Helena não pode ser a minha relação mais marcante. Não quero que seja.
- E agora, actualmente, a relação que tens, porque disseste que era estranha? A minha curiosidade era agora pânico, pois não queria ouvir sentimentos verdadeiros. Algures no meu íntimo mantinha uma esperança secreta.
- Porque ela parece não confiar em mim. Também é verdade que namoramos há 4 anos, mas com um interregno de dois. Um dia vim embora e nem sequer lhe telefonei durante esses dois anos. Aceitei um trabalho em Paris e só regressei quando o dinheiro acabou.
Ela aceitou-me de volta, mas não quer conhecer os meus amigos nem que eu saia com os dela e diz que só me apresenta aos pais um mês antes de casarmos.
- E não tiveste nenhum caso entretanto?, perguntei com uma pequena certeza na resposta.
- Não, claro que não. Tenho a fama, mas nenhum proveito. Sabia que mentia, mas não senti nele maldade.

A noite continuava serena. O rumo da conversa acabou por mudar e voltámos a recordar “os bons velhos tempos”. Acabei por lhe fazer notar que era tarde e concordamos dividir um táxi, para nos levar a casa. Devolvi-lhe o casaco, num gesto seguro, e ajudei a vesti-lo de novo. Ele morava agora perto de mim, mais perto do que nunca.
Durante a viagem de táxi falou-me que fizera duas tatuagens, mas não me quis confessar, envergonhado, quais as partes do corpo escolhidas. Uma delas era uma bruxa celta, zoomórfica. Contou-me a lenda toda no percurso. A magia já fazia parte do reencontro desde o início. Fiquei surpresa, mas não totalmente, quando ele disse ao motorista para parar um cruzamento antes da minha casa. Saímos e ele decidiu acompanhar-me. Senti medo. Não queria que me vissem na rua com ele, e em casa tinha o meu amante secreto a dormir confiante. Ele insistiu e eu não resisti mais.
Do jardim de uma das moradias retirou uma rosa. O filme parecia querer continuar. Ofereceu-ma, num gesto que eu percebi, previsível, mas belo na mesma. Na despedida, já à porta de casa, soube o que me dizer:
- Lembraste daquela vez no ginásio em que vieste ter comigo e me beijaste nos lábios sem querer?
Tremia ainda, expectante, enquanto rapidamente um sorriso se formava nos olhos, inundava-lhe o rosto e desaguava nos lábios.
- Gostava de te beijar outra vez.
E fez um gesto lento, que eu poderia ter impedido a qualquer instante. Mas não o fiz.
Os nossos lábios tocaram-se. Ele abraçou-me e eu não tentei fugir. Segurava numa mão a rosa que me havia dado e na outra uma certeza, que ele me confirmou depois. Ficou a ver-me enquanto entrava em casa. Parecia-me ter sonhado, e corri ainda para a janela para ver se ele ainda lá estava, iluminado à sombra de um candeeiro de rua. Como um anjo, havia desaparecido. Mergulhei no sono sem querer perceber nada, sem frio algum, na mesma cama que o meu amante. De manhã ao acordar recebi uma mensagem no telemóvel. Li-a e sorri: “Houvessem muitos segundos assim! Não te esqueças!”
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