quinta-feira, dezembro 04, 2008

Saber < Sentir

Haviam trocado palavras duras nessa tarde. Quando se reviram, à noite, no restaurante, entre amigos, o ar era frio e os olhares fugidios quebravam. Sempre a incerteza, a insegurança, o sentir mais forte, o sangue a correr nas veias palpitando, soando. Ele tentou a meiguice, indirecta, discreta, subtil meiguice. Ela evitou o confronto, olhou noutras direcções, falou com outras pessoas, mas os seus átomos vibravam numa só direcção. Instalou-se um turbilhão dessas ínfimas partículas, sem que ninguém percebesse as direcções, as trocas. Ela sentia-as, ele absorvia-as e havia outras mulheres que tentavam tomar as rédeas da tempestade. Até que o mundo, sem que ela se apercebesse do rápido tornar de eventos, obscureceu. Viu-o levantar súbito, fingir que agarrava o maço de cigarros e vestia o casaco, a socorrer-se dessa hipótese de fuga. Os seus olhos atingiram-na, rasgaram-na com as lágrimas em transgressão, enquanto se levantava da mesa. Ela soube sem saber. Mas soube e sem ter mão em si, num impulso impossível de subjugar, ela agarrou o casaco, em desassossego, mais o maço sem isqueiro e foi no seu rasto. Não pensou em ninguém mais, não olhou para trás, não quis saber de mais nada. O olhar aflito, o esforço de não correr, o sentir que os degraus, a porta de vidro, a curva constituíam desacessos, constrições. Olhou à esquerda e não o viu na varanda sobre o mar de nevoeiro. A sereia gritou-lhe pelo coração adentro e dirigiu-se para a direita, em direcção às escadas. Ele era já uma forma distante quase no alcance do carro. Ela parou pisando o primeiro degrau, abruptamente. Não acreditava que ele partisse, e tentou persuadir-se:”Não, ele vai procurar um isqueiro. Não entres!”. Ele abriu a porta e sentou-se.”Vê que eu estou aqui”. “Não percebes que me fazes sofrer? É de ti que fujo”. Hesitava naquele degrau. O frio. O grito que salvava navios. O nevoeiro. O maço de tabaco a rodar, repetitivo, insistente, sobre a mão esquerda. Olhou o mar atrás de si. Olhou para ele e viu uma baforada de fumo cinzento, nevoeiro dos pulmões, a sair através da janela lateral. Olhou para ela, de casacão negro, à espera, hesitante, bela, insegura. “Não me podes compreender, não sou como tu. Não desças, por favor.” A mão na chave, as lágrimas a escorrer e a arderem sobre a pele. “Estás à minha espera? Mas eu não posso ir ter contigo. Magoaste-me. Eu não sei porque estás a chorar, não sei se é por mim ou se és só tu que aí estás. Queres que eu desça?” O seu pé direito pousou no segundo degrau. O som do seu tacão ecoou. A chave foi tornada. As luzes do carro ligaram-se. “Não vás! Não me deixes!” sussurrou como se gritasse. “Não posso ficar. Não me podes ter”. Fez marcha atrás, uma semi-curva perfeita e seguiu, sem hesitação, para a estrada. Viu-o ir. Sabia que ele ia. Não acreditava, não percebia que fosse. A sereia gemeu, o nevoeiro adensou-se. O seu pé direito recuou. Sorriu. A falta de um isqueiro para acender um cigarro.
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